domingo, 20 de setembro de 2009

Carimbo de barras datado. Um palpite: Vicente

Faltando, até hoje, uma qualquer peça que possa provar a origem do carimbo de barras datado, é inevitável ter que especular procurando umas confirmações indirectas.

A hipótese que o carimbo tenha sido utilizado em Vicente surge ao ler o Relatório de Juvenal Elvas, director dos correios de Lourenço Marques, sobre a sua viagem de inspecção à Zambézia nos finais de 1898.
Escreve Juvenal Elvas (pag. 106 do livro de Luís Frazão):
"Em Vicente fui informado de que é costume affixar a marca do dia nos sellos só quando se fecha a mala e não quando as correspondências entram na estação. D´este modo nunca há atrazos!"

Não há qualquer margem para dúvidas: em 1898 em Vicente havia uma estação postal dotada de um carimbo marca do dia. Resta saber qual era esta marca do dia e quando foi aberta a estação postal (ou posto de correio).
Verifica-se logo uma contradição: se de um lado a estação dos correios de Vicente aparece citada pela primeira vez em 1899 na tabela de permutação de malas na Zambézia publicada pela Direcção Geral dos Correios, do outro o relativo carimbo privativo não aparece na lista dos carimbos dessa época no livro de Altino Pinto "Marcofilia de Moçambique". Aliás o primeiro carimbo privativo de Vicente citado nesta obra é o hexagonal, com a data mais antiga de 1907. De 1899 a 1907 parece não se conhecer qualquer marca privativa, ou mesmo manuscrita, em clara contradição com quanto afirmado pelo Juvenal Elvas. Também não havia razão, dada a importância de Vicente na navegação do Zambeze, de encerrar a estação durante esses anos. É verdade também que o facto de não se conhecer o carimbo não significa que seja confirmada a sua inexistência, mas é assinalável a coincidência que há entre a última data conhecida do carimbo de barras datado e a primeira data conhecida do carimbo hexagonal de Vicente: 1907. A hipótese é que Vicente não tenha sido dotado de carimbo privativo (circular) mas sim do carimbo anónimo, pelo menos até receber o carimbo hexagonal.

Selo leiloado pelo Clube Filatélico de Portugal com carimbo de barra datado OUT 07

Este selo fornece mais uma possível sugestão da origem do carimbo. As palavras manuscritas são "Katandica" e "Baruè", o que não é impossível mas - infelizmente - o manuscrito aparenta ser muito duvidoso nos levando a continuar a perseguir a hipótese de Vicente.

Se o carimbo de barras foi utilizado em Vicente, estação postal aparentemente aberta em 1899, como explicar a existência de carimbos de barras datados a partir de 1888?

O envolvimento do porto fluvial de Vicente na transmissão de correspondência, além de ser óbvio por ser o local de permutação da correspondência que seguia a via terrestre de e para Quelimane, é confirmado em várias ocasiões, correlata sobretudo com Mopea, localidade e sede de uma Estação Postal localizada a cerca de 5 km:

 pag. 112 "As várias descrições feitas por portugueses e estrangeiros que de Quelimane se dirigiam ao Zambeze, começam sempre com um percurso de duração entre oito a onze dias subindo o Quaqua, dependendo do "volume de água que leva o rio", para chegar a Mopeia ao fim de 5/6 dias, e preparar a carga para o transporte por carregadores até Vicente, separada cinco quilómetros de Mopeia por um extenso areal (3/4 dias). Só então estavam reunidas as condições para a subida do Zambeze em almadias ou canoas, manejadas por remadores negros". - Luís Frazão - Não indica fontes e portanto o ano considerei como no meio entre a transcrição anterior de 1876 e a posterior de 1882.

Em 1882 (não se conhecem carimbos de barra tão antigos) o porto de Vicente não era porém ainda considerado um local de transição das malas de correio e de facto não constava no concurso de para o serviço de condução de malas de correio publicado no B.O. de 27/5/1882 (ver pag. 112):
"Em 1882, ainda era assim que se processava o transporte de malas do correio, conforme o mostra o anuncio publicado no B.O. n. 23, de 27 de Maio, onde é posto a concurso o serviço de condução de malas do correio entre as seguintes localidades: Distritos de Quelimane e Tete: Quelimane a Mopéa; Mopéa a Sena; Sena a Tete".

A importância de Vicente é contudo destinada a aumentar. Em 1889 a "African Lakes Corporation" já tinha aí estabelecido os seus depósitos e em 1896 era um porto regularmente escalado pelos vapores que navegavam no Zambeze. (ver pag. 120 e 125).

Em 1891, assim como referido no The Postal History of Nyassaland de Edward B. Proud (1997), no que se refere às  instruções recebida pelo primeiro postmaster em Chiromo, H.C. Marshal, Vicente aparece como local de destinação e eventual distribuição de correspondência, localidade já não acomunada a Mopea:
"The letters addressed to any place on the banks of the Shire, or to Vicente, Mopeia or Chinde, you will hand to the captain of the S.S. James Stevenson or Lady Nyassa, or the British steamers proceeding in the direction of the placed mentioned, and request him to deliver the letters for transmission to the local Portuguese postal authorities, or to the person to whom the letters are addressed." (ver pag. 88)

Em 1893 Vicente Vicente aparece como local de transição de correio, mesmo se ainda subordinado a Mopea.
"Fica estabelecido que malas do correio da Zambézia interior seguem d' aqui ao Chinde por mar e d´esse porto ao porto Vicente (...) Aberta a mala geral (em Chinde) e depois feita distribuição se fará imediatamente aviso de que as malas fecham pelo primeiro vapor a partir para o Vicente (...) Estas são malas extraordinárias, que devem fechar duas horas antes do navio partir, e ser dirigidas ao correio de Mopea e entregues ao chefe do posto fiscal de Vicente (...) Todas as diferentes malas para o interior da Zambézia são incluídas com a do Chinde para o correio de Mopea (...) As malas são entregues no porto Vicente ao chefe do posto fiscal ou ao chefe da estação telegráfica se não estiver qualquer pessoa enviada pelo capitão mór para as receber ..." (ver pag 131 e 132).

E finalmente em 1898 Juvenal Elvas, além do que foi citado no inicio desta mensagem, escreve: "(Os vapores) Servem não só os pontos extremos, um dos quais as vezes, é Chicuwawa, mas também Marromeu, Vicente (Mopea), Villa Bocage, etc. etc., levando malas do correio para estes pontos" (ver pag. 103)
Vicente parece finalmente ter-se tornado, postalmente e não só, mais importante de Mopêa, cuja estação postal foi provavelmente mandada encerrar não constando em 1899, ao contrário de Vicente, entre as estações do serviço de permutação de malas por via terrestre de Quelimane a Zumbo.

Resumindo:
  • Vicente desde 1891 estava certamente e directamente já envolvido na recepção e transmissão de malas de correio permutação de malas e eventualmente na distribuição de correspondência.
  • A importância de Vicente cresceu rapidamente desde o estabelecimento dos depósitos da African Lakes (1891) até substituir Mopea como estação postal principal (1898).
  • Em 1891 as malas vindas de Chiromo eram entregues em Vicente às autoridades postais portuguesas, mais a frente definidas como "chefe do posto fiscal ou ao chefe da estação telegráfica se não estiver qualquer pessoa enviada pelo capitão mór para as receber".
  • Não se conhecem marcas postais de Vicente se não a partir de 1907, data mais antiga conhecida do carimbo hexagonal, apesar de haver certeza que já em 1898 havia em Vicente uma estação postal e que esta estava dotada  de uma marca do dia.
  • Não sabendo se anteriormente a 1898 em Vicente estava ou não em uso um carimbo datado (e portanto se havia ou não um posto de correio ou alguém encarregado de tratar a correspondência local) é legitimo perguntar: se em Vicente seguramente a partir de 1891 já eram processadas as malas recebidas (havia actividade e autoridades postais), onde eram franqueadas e expedidas as cartas enviadas pelos residentes (em 1889 já havia os depósito da importante companhia de navegação Afrikan Lakes) deste porto? As levavam para Mopêa (5 km) e daí serem postas na mala para ser novamente transportada para Vicente? Existindo um encarregado dos correios (chefe do posto fiscal ou da estação telegráfica, ou qualquer outra pessoa indicada pelo capitão môr), este sem "ser" uma estação postal (por isso não dotado de carimbo privativo) não podia estar autorizado a vender selos e a obliterar a correspondência a ser expedida a partir de Vicente?
As, para mim, óbvias respostas a estas últimas perguntas, são mais um elemento que me leva a sugerir Vicente como localidade de origem do carimbo de barras datado.
A afirmação não é naturalmente definitiva e pode ser mudada ou adaptada se se encontrarem elementos contraditórios como, por exemplo, a descoberta de um carimbo de Vicente anterior a 1907 ou cartas que possam indubitavelmente descartar a hipótese formulada. Poderia ser o caso da carta cuja foto é publicada na pag. 145 do livro do Luís Frazão. A diferença de quase 4 meses entre a data de expedição (28/5/1896) e de trânsito de Quelimane (19/9/1896) torna muito difícil imaginar que a carta tenha saído de Vicente. Pode ter havido um erro de data no carimbo mudo, como sugerido por Frazão, mas esta seria mais uma especulação a somar a tantas outras. Talvez algo não esteja certo com esta carta ... mas esta é outra história.

1 comentário:

Fernando Bernardo disse...

A filatelia, assim, tem outro encanto. A satisfação é ainda maior quando ela é praticada por amigos...
Parabéns Giorgio.